O Amazonas, alvo central da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia instalada na terça-feira (27) no Senado, guarda uma tradição em desviar recursos públicos.
O senador Omar Aziz (PSD), que presidirá a CPI, ainda deve respostas sobre como as autoridades não devem agir na saúde pública.
A esposa de Aziz, a deputada Nejmi Aziz (PSD), e os irmãos do senador já foram presos, em 2019, por acusação de desvio de verbas públicas da saúde na maior operação da história da Polícia Federal (PF) no estado amazonense. Organizações da sociedade civil avaliam que ter o senador Aziz na presidência da CPI é, no mínimo, amoral.
Não causa surpresa que, uma vez indicado para presidir a CPI da Pandemia, Omar Aziz tenha dito em entrevista no dia 16 de abril: “Não tem governo, seja de direita, centro ou esquerda, que não tenha cometido equívocos nessa pandemia”.
Há cinco anos, o Ministério Público Federal (MPF) e a PF no Amazonas iniciaram a Operação Maus Caminhos, que se desdobrou nas operações Custo Político, Estado de Emergência, Cashback, Vertex e Eminência Parda, que se estenderam até os dias atuais.
Naquele 2016, quando Aziz já ocupava uma das vagas no Senado Federal e dois anos após renunciar ao governo do Amazonas, investigadores da Maus Caminhos descobriram desvios milionários na saúde estadual.
“Eu penso que se colocarem o Omar Aziz nesta Presidência da CPI da Pandemia é por dois motivos: primeiro, porque ele é amazonense [radicado no Amazonas, Aziz é natural de Garça, em São Paulo]; segundo porque ele tem o rabo preso. Então, para quem tem e já é corrupto, não tem ética, não tem moral para presidir uma CPI com essa, que é a CPI da pandemia. Para mim, ele não representa bem a presidência de uma CPI nesta proporção, desse tamanho”, disse Francy Júnior, da Associação das Mulheres Brasileiras (AMB) e ex-candidata a vereadora de Manaus pelo PT.
O presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas, médico Mário Viana, sem citar diretamente o nome do senador Omar Aziz, afirma que a CPI da Pandemia está contaminada desde a origem.
“A gente já vê que as escolhas são sim parciais e não imparciais. Então, infelizmente, como médico e cidadão, não espero muito dessa CPI. Eles [os senadores] têm as responsabilidades; infelizmente isso é o retrato do país. A gente perde a oportunidade de ver uma investigação profunda que pudesse realmente apontar os desvios de recursos que, com certeza, foram cometidos em nome da pandemia e do claro sacrifício de vidas de vários brasileiros e de pais e mães de família que deixaram órfãos, desestruturando as famílias e a população brasileira”, disse Viana.
A Operação Maus Caminhos
Entre 2010 e 2016, dos quase R$ 900 milhões repassados pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS) ao Fundo Estadual de Saúde (FES), mais de R$ 260 milhões – quase um terço dos recursos – teriam sido destinados ao Instituto Novos Caminhos (INC).
A empresa é administrada pelo pecuarista e médico Mouhamad Moustafa, que responde aos processos da PF preso no sistema penitenciário do Amazonas.
A Operação Maus Caminhos (processo-crime n.º 41- 09.2017.4.01.3200) identificou como líder da organização criminosa Mouhamad Moustafa, diretor do INC, responsável pela gestão da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos Sales, em Manaus; Maternidade Enfermeira Celina Villacrez Ruiz, em Tabatinga (AM); e Centro de Reabilitação em Dependência Química (CRDQ) do Estado do Amazonas, em Rio Preto da Eva (AM).
Na Operação Custo Político, 2ª fase da Maus Caminhos, a PF quebrou os sigilos bancário, telefônico e telemático de Moustafa, que revelaram menções expressas a pagamentos sistemáticos de propina e troca direta de favores financiados por ele em favor do ex- governador José Melo, sucessor de Omar Aziz. Melo foi vice-governador de Aziz, de 2010 a 2014.
Na Cashback, o MPF apontou que Murad Abdel Aziz, irmão do indicado à presidência da CPI da Pandemia, fazia parte do esquema de desvio de recursos da saúde.
“Valia-se do prestígio político do irmão para azeitar os negócios. Murad Aziz operava para Moustafa dentro da administração pública, recebendo R$ 40 mil mensais pelos ‘favores’, valores pagos entre 2012 e setembro de 2016”, diz o relatório do MPF.
De acordo com a investigação, Murad conseguiu contratos para o INC por meio de dispensas indevidas ou de fraudes em licitação, além de agilizar pagamentos ao grupo criminoso, especialmente usando de tráfico de influência na Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz).
Murad, compadre de Moustafa, foi preso por acusação de prática de crimes de tráfico de influência, lavagem de capitais, vazamento de informações e monitoramento de autoridades públicas.
“Entre outubro de 2011 e fevereiro de 2014, em vinte e nove oportunidades distintas, porém continuadas, Murad Abdel Aziz obteve para si R$ 1.160.000 em parcelas mensais de R$ 40.000, pagas por Mouhamad Moustafa, com auxílio direto de Priscila Marcolino Coutinho, a pretexto de influir em atos praticados por agentes públicos e políticos do Estado do Amazonas, notadamente em benefício da Orcrim instalada na saúde por meio do Instituto Novos Caminhos”, diz o relatório.
O MPF determinou na denúncia os três acusados reparar os danos causados ao erário público, devidamente atualizados, no montante de R$ 7.607.246.
A 5ª fase da Maus Caminhos, a Vértex, foi deflagrada em 19 de julho de 2019. Ela revelou, de forma inequívoca, o envolvimento do ex-governador e senador Omar Aziz com as operações orquestradas por Moustafa.
As investigações desta fase foram iniciadas a partir de inquérito instaurado em 2016, no Supremo Tribunal Federal (STF) e acompanhadas pela Procuradoria-Geral da República, por se tratar de parlamentar com foro especial, razão pela qual ele não foi preso.
Ainda na Operação Vértex (processo número do processo é 0006964-80.2019.4.01.3200), a Polícia Federal prendeu, temporariamente, a esposa do senador, a deputada Nejmi Aziz, e os três irmãos dele: Murad, Amin e Manssur Aziz, também em 2019, por determinação do juiz Marllon Souza, da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal do Amazonas.
A Justiça bloqueou bens no valor de R$ 92,5 milhões dos investigados e indicou “fortes indícios de vantagens indevidas à família”, como: “mesada de R$ 500 mil para Aziz; pagamento de contas e repasses de dinheiro a mulher e aos três irmãos, além e viagens e relógio de luxo”, diz o relatório.
O hospital Delphina Aziz
Os desvios, segundo as investigações, começaram quando Aziz era governador do estado, entre 2010 e 2014. Ele nega as acusações (Leia no final do texto), mas na ocasião das prisões dos familiares, o senador disse “todos são maiores de idade”.
A PF também realizou busca e apreensão nas casas de Manaus do presidente da CPI da Pandemia, no condomínio Ephygênio Salles e no apartamento funcional dele em Brasília.
Segundo as investigações, os Aziz são acusados de prática de crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Pesa ainda contra Nejmi as acusações de indícios do cometimento dos delitos de peculato, diz a PF.
Conforme a investigação, Murad e Mouhamad Moustafa chamavam o senador Omar Aziz de “Alfa”: “O Alfa tem falado comigo só nele diz que é seguro”; como foi revelado em um aplicativo, que a dupla achava que era seguro. Dos familiares, apenas Murad foi denunciado por três vezes pela Justiça Federal.
Dos irmãos Aziz, Amim já respondeu processo na Justiça Federal por agredir um professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 2009.
Já Omar Aziz foi citado na Operação Saúva da PF, em 2006, por pressionar deputados da Assembleia Legislativa pela aprovação de uma emenda para garantir uma aposentadoria de aproximadamente R$ 20 mil.
Antes, como vice-governador do Amazonas em 2004, Omar Aziz foi inocentado pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de Exploração Sexual do Congresso com voto do então senador Arthur Virgílio (PSDB). Aziz foi acusado de coagir uma delegada e explorar uma menina.
Omar Aziz nasceu em Garça (SP) e começou a carreira política nos anos 1980 como militante do Partido Comunista do Brasil, quando veio morar em Manaus. Em 1992, com apoio do ex-governador Amazonino Mendes, ganhou a eleição para vereador de Manaus.
Entre 1991 e 1995, foi deputado estadual. Entre 2003 e 2010, Aziz foi vice-governador de Eduardo Braga pelo PMN. Braga (então do PPS) saiu do governo para se candidatar a senador pelo hoje MDB.
Ele também terá assento na CPI da Pandemia. Aziz continuou o governo e, em 2010, foi reeleito governador tendo como vice José Melo (também do MDB). Em 2011, Omar Aziz fundou o partido PSD regional. Em 2014, foi a vez do grupo hegemônico decidir pela candidatura a governador de Melo (pelo PROS) e Aziz ao Senado; os dois ganharam.
Ainda no governo, em 2013, Omar Aziz iniciou as obras do Hospital e Pronto-Socorro Delphina Rinaldi Abdel Aziz, que recebeu este nome em homenagem à sua mãe. Com um investimento inicial foi de R$ 117.951.604,82, as obras ficaram sob a responsabilidade da Abengoa Concessões Brasil Holding S.A., uma das três empresas que formaram o consórcio Zona Norte (incluindo ainda a SH Engenharia e Construções Ltda. e a Magi Clean Administração e Serviços Ltda.).
A primeira etapa da unidade foi inaugurada em 2014 pelo ex-governador José Melo. O hospital foi apresentado como o maior da Região Norte. “O Amazonas é o Estado brasileiro que mais investe recursos próprios em Saúde. Temos destinado quase 24% da receita do Estado para o setor, porque é necessário fazer frente ao aumento da demanda pelos dos serviços de saúde”, justificou os gastos à época Melo.
Em 2016, José Melo anunciou que a empresa Abengoa Concessões Brasil Holding S.A entrou em falência. “No entanto, pelo contrato de concessão, o governo vai ter que pagar uma mensalidade de R$ 11.366.004,02 ao longo dos 20 anos conforme a vigência do contrato”, informou o governo.
Naquele ano, Melo assinou o decreto nº 37.218, estabelecendo o Estado de Emergência Econômica no Sistema Estadual de Saúde. A justificativa era a de que o Amazonas não possuía orçamento “para honrar com a totalidade do pagamento a seus fornecedores e prestadores de serviços”.
Em novembro daquele ano, o Ministério Público de Contas (MPC) do Amazonas apontava que o contrato de gestão do Hospital e Pronto-Socorro Delphina Rinaldi Abdel Aziz havia sido feito de forma irregular com a Oscip Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (Imed).
Não havia critérios rígidos de contratação de mão-de-obra, nem qualificação técnico-operacional para os serviços. Mas sobravam indícios de superfaturamento.
Em janeiro de 2017, a Secretaria de Saúde do Amazonas renovou o contrato suspeito por mais seis meses. Além do Pronto-Socorro, o Imed passou a gerir também o parque de imagens do Delphina Aziz.
Naquele mesmo ano, o governador José Melo, preso pela Operação Maus Caminhos, foi cassado por compra de votos. Em 2018, a esposa do ex-governador, Edilene Melo, foi presa pela Operação Maus Caminhos.
O então secretário de Saúde Vander Rodrigues Alves, e Maria de Belém Martins Cavalcante, secretária executiva do Fundo Estadual de Saúde (FES/AM), contrataram em caráter emergencial o Imed para a realização de 780 cirurgias eletivas.
Em agosto de 2017, o MPC entrou com nova representação (70/2017 – MPC-SAÚDE, Proc. No. 13760/2017) contra esses secretários.
O valor do contrato foi de R$ 8.433.233,40 (Portaria n. 0756/2017 – GSUSAM, extrato publicado na p. 8 do DOE de 04 de agosto de 2017). Mas em vez de prestar o serviço, o Imed subcontratou o Instituto Gente Amazônica (Igam), que cobrou pelos serviços R$ 1.287.000 (Iceam 004/2017).
Curiosamente, em decisão monocrática de 16/08/2017, a conselheira-relatora Yara Amazônia Lins Rodrigues dos Santos negou medida cautelar apresentada pelo MPC para suspender a prestação de serviços. Segundo ela, o Tribunal de Contas não tinha competência para determinar a sustação direta de contratos administrativos.
Em 2016, o governo ampliou as obras para oferecer 380 leitos e 50 Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), sendo 30 para atendimento de adultos e 20 infantis.
À época, ex-secretário de Saúde Pedro Elias, do governo Melo, fez a seguinte declaração: “Eu vislumbro que nós não precisaremos de leitos novos para a rede da capital pelos próximos cinco anos, no mínimo, quando o hospital estiver plenamente ativo”.
Quando assumiu o governo, em 1o de janeiro de 2019, Wilson Lima (PSC) dispunha de uma provisão de soro fisiológico suficiente para apenas dois dias de funcionamento da rede hospitalar pública de Manaus.
Isso porque, já sob sua responsabilidade, houve o atraso de oito meses nos repasses ao Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz. Apresentador da TV A Crítica de um programa policialesco, Lima foi eleito com apoio de Jair Bolsonaro, mas também recebeu apoio oculto de Omar Aziz.
A pandemia chegou em 2020 e o Delphina Aziz estava completamente desestruturado para se tornar a unidade de referência no combate à covid-19 em Manaus. O hospital foi o primeiro a colapsar no Brasil, como denunciou o ex-ministro Henrique Mandetta, que saiu do governo perseguido por Bolsonaro. A pandemia que deixou, até agora, mais de 12 mil mortes no Amazonas.
As mortes diárias tornaram Manaus o epicentro da primeira onda, e atingiram a média de 100 óbitos diários, em dados de 27 de abril.
O Instituto Médico Legal só tinha capacidade para atender a apenas 20 corpos. Assim, os cadáveres precisavam aguardar vaga nas gavetas para congelamento. Diante de uma fila que só crescia, caminhões frigoríficos serviam de necrotérios e a prefeitura teve de abrir trincheiras com tratores nos três cemitérios da cidade.
Entre as capitais brasileiras, Manaus ocupa a 26a posição no repasse de recursos da União destinados especificamente ao combate do vírus – R$ 341 milhões. O dinheiro seria suficiente para atender a 13.640 pacientes em UTIs, por dez dias cada um, com base no custo médio de 2,5 mil reais estimado pela Universidade de Campinas.
Em meio ao caos sanitário, os contratos do Complexo Hospitalar Zona Norte, composto pelo Hospital Delphina Rinaldi Abdel Aziz e pela UPA Campos Sales vieram à tona, revelando operações suspeitas.
Somente entre fevereiro e agosto de 2020, o governador Wilson Lima resolveu liberar o repasse de R$ 82,8 milhões para o Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano (INDSH) equipar as unidades de saúde.
De acordo com investigações da Polícia Federal, apenas R$ 1,8 milhão, do repasse de R$ 82,8 milhões, foi investido no Delphina Aziz e na UPA Campos Sales.
Não se sabe ainda o que aconteceu com mais de 90% de recursos pagos por meio do 4º Termo Aditivo do Contrato 001/2019, agora sob os escrutínios do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União.
Procurado pela Amazônia Real para falar sobre as investigações da Polícia Federal, que prendeu seus familiares por acusação de desvio de recursos da saúde pública do Amazonas, o senador Omar Aziz respondeu, em relação aos bens bloqueados o seguinte:
“Essa operação feita por esse juiz foi anulada. O juiz não era nem o competente da causa. Fez mais por vingança. E tanto é que até hoje eu não fui denunciado em absolutamente nada, depois de quase dois anos aí, nenhuma denúncia. Aliás, eu não tenho nenhuma denúncia contra mim”.
Omar Aziz negou que os bens continuassem bloqueados pela Justiça Federal. “Não, noticiaram outro dia que tinham apreendido meu passaporte, essas coisas eu nem vou estar respondendo. Isso aí é só vocês aqui que falam isso e mais ninguém. Lá fora ninguém fala nada. Você sabe muito bem como funcionam essas coisas aí”.
Com relação às prisões dos irmãos e da sua esposa, Omar Aziz disparou: “Eu já te respondi que foi anulado este negócio. Amigo, eu estou querendo trabalhar para ver se não morre mais gente”.
Aziz disse também que já está trabalhando por conta da CPI da Pandemia. “O relator vai apresentar um cronograma de trabalho, será aprovado esse cronograma, tem que ser aprovado pelos senadores que fazem parte da CPI, e aí vai seguir esse cronograma. Vai ouvir quem tem que ser ouvido. A CPI começa de um jeito e a gente não sabe como vai terminar”.
A reportagem procurou a deputada estadual Nejmi Aziz, mas ela disse que não comentará as acusações da Polícia Federal. (Colaborou Leanderson Lima)
Créditos: Brasil de Fato